Às margens das cidades, das torres e dos portos, dos templos e palácios imperiais, longe dos gritos das lavadeiras, existe um espaço que reina como capricho da natureza e, como verificamos mais tarde, também capricho dos próprios homens. O deserto, filho rebelde da geografia, estende-se para longe das cidades, onde somente a fé ou o delírio o atravessam e alguns animais tão caprichosos quanto a superfície pela qual rastejam, sobrevoam, caçam e apodrecem. Como falar do deserto sem falar dos desertos? Acredite se eu disser que tudo neles é movediço, a imagem que fazemos deles de dentro das muralhas da capital, o primeiro instante desértico quando nada mais resta no olhar a não ser a ausência da cidade. Tudo se resume em sua arma mais secreta: a miragem. Até seus nomes escapam no vento e nos dialetos movediços dos nômades. Deserto do Vento Vermelho já é logo ali deserto dos Rubros e, a um passo à direita, deserto do Ombro da Mulher Deitada. Nele nada se contém e seu desenho se transforma ao passo da imaginação dos viajantes que pousam ali olhos de quem nunca viu, nunca pensou ou nunca disse.
Quando cheguei à porta do deserto, que nem é porta e tampouco deserto ainda, avistei antes de tudo um horizonte destruído no qual não era mais possível perder o olhar no infinito, a não ser pelas escavações, crateras dentro das quais a visão do viajante parecia ser sugada até as entranhas da terra. Em contraste com o breu dos buracos, a superfície do local era composta de uma rocha vermelha em um tom de vermelho nácar. O acaso, fantasma que paira sobre toda jornada, fez com que toda a história do lugar me fosse relatada pelo seu habitante ancestral, o chacal. Mina de pedra preciosa nos tempos áureos de outra dinastia de reis, o deserto dos Rubros nasceu da extração do mineral vermelho leitoso e de seu abandono na ocasião em que, muitas milhas ao sul, outro mineral bem mais valioso que este havia sido descoberto. A lenda da pedra rubra descreve uma noite na qual a lua acariciou o horizonte de tão perto que foi roçada pelo vento vermelho do norte. Desta visita inesperada, espalharam-se pelo chão tapetes de rocha vermelha, símbolo de encontro entre o céu e a terra. O chacal caminha toda noite relembrando o mito e vai seguindo as veias expostas do mineral. Às vezes, o vento vermelho sopra novamente com saudades daquele instante, mas tudo o que ele faz é infiltrar-se em todas as cavidades, perder-se nos abismos e voltar, livrando o local de todas as marcas do tempo, como o pó, alguns ossos e fragmentos de pedra preciosa, pequenos como lágrimas. O vento em seu trajeto elíptico deposita os vestígios em várias escalas, longe de Rubros, levando-nos cada vez mais perto do coração de um corpo que não se pode contornar, cuja pele é sempre mais uma miragem, mais uma promessa, um por vir.
Assim, cheguei ao deserto de Tóvia. Mar branco de ossos desfeitos, gastos, andei neste pó escaldante acompanhando a curva de sua duna mais alta. Por vez, um vento brando e rasteiro ondulava o pó de maneira tão insinuante que eu nunca soube se era realmente obra do vento ou sim uma serpente branca deslizando duna acima. O chacal tinha avisado sobre a serpente, sobre o perigo de pisar nela e de ser levado junto nas profundezas do pó - lá onde ainda permanecem inteiros os ossos dos chacais, sobre seus olhos que são como duas lágrimas vermelhas. Mesmo se fosse de fato uma serpente dançando naquela areia, o chacal não poderia saber que, em vez de asfixiar o viajante, ela o levava no vento, guiando-o para além das dunas, um pouco mais perto do rumor das fontes. No caminho dos ossos, esqueci de procurar o par de olhos rubros. Os chacais, com seus olhos que miram ao mesmo tempo o passado e o futuro, nunca se esqueceram do abandono e cultivaram, em segredo, um medo tão insondável quanto as crateras de seu território, um medo projetado no amanhã e certamente nas muitas dinastias futuras.
Sem olhar para trás, penetrei sem medo no deserto de Xalo. O horizonte estava de volta aos meus olhos, mais reto e perfeito do que qualquer imagem possível. Caminhei e logo senti o chão devolvendo a vibração dos meus passos, subindo pelas minhas pernas como uma estranha corrente provindo do solo. Parei um instante e verifiquei, ao encostar meu ouvido no chão, o murmúrio subterrâneo. Um escorpião prateado como a lâmina das espadas se aproximou e colocou no meu ouvido uma gota de água do alto do seu dardo. Compreendi que naquele chão raso se escondiam os poços, os lençóis líquidos, e que os buracos das minas de Rubros de tão fundos e tortuosos haviam quase aflorado neste lugar que não parecia conter nada, esconder nada. Assim, não se enxergava o menor acesso aos poços e desconfiei que ninguém, exceto os escorpiões, transitava entre a superfície e as fontes. Por fim, saciei minha sede, gota após gota, graças a um exército de escorpiões prateados.
Logo depois, segui viagem e encontrei-me no deserto de Lagas. Ali, o sol parece estar mais próximo da terra. Tanto que as águas secretas encontradas em Xalo aqui evaporavam e formavam nuvens volumosas. Não se via o horizonte nem o sol, somente um lençol opaco e, por vezes, uma gaivota costurando entre o ar e a água presa no céu. Quando ela desaparecia nas nuvens, lembrava-me da serpente e da areia de ossos, do aviso do chacal. Quando ela ressurgia, lembrava o escorpião e o frescor da água pingando na minha boca, aquela felicidade em impulsos mínimos. Pensei de novo no vento vermelho e onde ele me levaria se decidisse soprar que nem naquela noite em Rubros. Seria como me carregar na garupa da gaivota e sobrevoar o mar, avistar o horizonte de novo perfeito entre as ondas da serpente invisível. Entendi que os desertos me levaram de volta até as portas da cidade, na entrada do porto onde os viajantes desembarcam juntos com todas as especiarias. Perto das torres e palácios, junto aos mercadores de rubis e os gritos das lavadeiras.