canções, poemas, escritos

canções, poemas, escritos

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

uma fotografia do ar

para começar uma história

uma gota na cachoeira

de sua angústia

linhas quebradas caindo

feito aço

num pano fino

pausa.

você já está a caminho

e não vai reparar nas

rosas

deixadas atrás

nos seus passos

fumaças

uma ferrovia

de perfumes no

seu rastro

você está prestes a falar

mas as palavras sempre dizem tarde demais

tatu

tatu

meu corpo se tatua

nome, âncora, lágrima que atua

correndo do olho-terceiro

flor solitária em solo estrangeiro

fala primária em som estrangeiro

que transcreve tudo e diz tão pouco

por fim a tinta preta

procura um mar

um porto, um marinheiro, um bar

um copo a encher ou uma veia seca

nas minhas cavidades

se estampa uma constelação que transpira pouco

na fala estranha do meu corpo

na carapaça encolhida

o espectro da mancha que só eu

sei

o vento e o dragão

o desejo como um livro folheado.

eu conto todos

meus anos de aprendizagem

em abrir territórios em mim

supondo que sobrariam só partículas

dos catalisadores, dos funis

que feito em campo minado

eu cairia de costas

e inauguraria túneis em mim

eu sabia que ventos passariam

eu sabia que haveria quentes, secos

mistrais que carregam o azul no coração de uma tempestade

eu sabia os gestos

quando minhas mãos protegeriam meu rosto

ou dançariam, abertas em catavento

ou simplesmente dançariam juntas como

morcegos provando uma nova luz

a abolição dos limites entre as cores

das cavernas e dos prados

os perigos se exercitando nos tons pacientes

a brisa morna caindo no punho do desejo

sussurrar sem saber

qual passo carrega sombra e luz

e qual nome de vento sustenta o baile embriagado

de um dragão de papel.

o espantalho

o espantalho

é duas vezes maior que o medo

mas veste roupas que transbordam

fossiliza-se no coração dos campos

e amedronta, silencioso, até o vento

fiquei marcado com a ausência de traços

o rosto lembrando um medo de palha

ou pano ou qualquer material inerte

que causa espanto pelo engano

demorei pra ver a madeira

que crucifica o boneco no ar

com seus kilos de gritos invisíveis

nos bolsos da jardineira sempre rasgada

aprendi a mover o sangue mais veloz

minhas pernas em roupas curtas demais

pra entrar na floresta, na casa, quarto, armário

fugir do espanto surdo e mergulhar num tiroteio explícito

familiar e mais alto do que o corpo amarelo jamais alcança

enquanto o espantalho me olhava ao longe

os corvos devoraram a colheita

auto-retrato

.por um túnel
e algumas janelas
num tapete que propulsa contra
o vento
me assento
e deslizo sorridente
nas solidões que desmoronam
e que erguem nova utopia:
quando acredito em você
quando não mais temo o escuro
quando no maldito tapete
escorrega o futuro

eu serei sempre
(e em cada partícula de mim)
o que me espera no fim.

auto-combustão

a chama

a fumaça que dança

e me lança por toda parte

sou papel

logo cinzas

transe de um incêndio

transitório

da boca ao céu

do céu ao chão

as cinzas caem

nesse território

em vão

e sou rei

e sou ninguém

do pão ao pó

do pó à brisa

hei de ser então

a cinza

a cinza

hei de ser então

do pó à brisa

do pão ao pó

e sou ninguém

e sou rei

em vão

nesse território

as cinzas caem

do céu ao chão

da boca ao céu

transitório

transe de um incêndio

logo cinzas

sou papel

e me lança por toda parte

a fumaça que dança

a chama

abalo

.ainda que tudo sumisse
ainda que eu fosse
mais que tudo
que saísse vencendo
o mundo
restaria sempre esse
pouco d'água
essa profusão de falhas
no chão
os seísmos secretos tão
fundos
que ainda que tudo sumisse
que eu vencesse mundos
haveria a lágrima veneno à beira

por baixo de meu corpo deitado
em horizonte de cordilheira

o derradeiro abalo que eu falo
e que me cala.

a fuga das estrelas do general

Chega o Dia Nacional do Glorioso Poder comemorado com grandes paradas e desfiles. O general se prepara para o grande evento, porém se encontra muito aflito. A ocorrência é a seguinte: as cinco estrelas do traje de gala do general desapareceram. Num extremo desespero e fúria, o general decide mobilizar todo o batalhão. E assim, todos os batalhões e logo o exército inteiro se dedica obsessivamente à procura das preciosas estrelas. Enquanto isso, no país ao lado, o marechal, que vive numa constante inveja e sonho em conquistar o território do general, aproveita a retirada dos soldados nas fronteiras para invadir o vizinho. Naquele mesmo dia, o marechal captura o general e manda executá-lo como é de costume no país tomado: jogando o condenado do alto de um helicóptero no meio do mar. Inconsolável, o general é jogado ao mar e, enquanto aguarda a morte, olha para o céu estrelado límpido (provavelmente será devorado por algum tubarão ou atropelado no intenso tráfego de submarinos e porta-aviões nesta área). Parece-lhe ver brilhar cinco estrelas com mais intensidade, alinhadas em constelação. Enquanto é vítima de um violento ataque de câimbras, percebe com emoção que elas estão todas piscando para ele. Eis uma despedida digna de um general, pensa ele com alívio. Enquanto ele vai afundando, as estrelas reassumem seus tronos e vão contando às outras a dificuldade que foi se desabotoar do paletó sem serem vistas pelas medalhas que, obviamente, estão sempre do lado do patrão.

3x animal

Dragões

Sairei pelas ruas. Meu deleito. Sou tão sinuoso quando elas. As pessoas no meu ventre dançam. Lá no magma escondido. E de papel, danço um baile embriagado. Elas nunca viram sequer o céu. E é dia de festa: é hoje que eu me incendeio. Cuspo a chama que me consome e logo sou apenas cinzas. Alguma cor que ficou no chão, rastro de carvão. No céu, eram fogos de artifício, e as pessoas com os olhos tremendo no frio das estrelas.

Cavalo marinho

Curvado. Ereto. Hipocampo numa cavalgada marinha. Poeira de bolhas no seu caminho. Por baixo da armadura amarela - tua pele, o sangue frio que ninguém diria. Os olhos que tudo vêem. Negros que parecem poços de cegueira, ou dois pingos de tinta que o polvo cuspiu na cara altiva, tantos ciúmes - meus tentáculos. Nesta suposta calma, a obsessão flutua. A minha. A graça que vejo dançar num aquário exposto ao mundo. Quando eu te perco para o abisso, quando eu cuspo tão forte que te perdes no negro. Quando o cavalo se torna espuma de sal, prestes a galopar no término das ondas. Os meus tentáculos, meus cuspes no ar - aqueles peixes arqueiros que acertam na mosca, quando tudo já é insuficiente e a crina já vai num embalo que meu braço nunca alcança.

Vampiros

Martelar forte até chegar ao fundo do caixão. São eles que arrepiam o pescoço da noite. À procura de tudo que não seja luz, ávidos de boas moças, peles imaculadas e logo abaixo encharcadas de sangue. Cortina da noite na capa que se fecha sobre a virgem inocente. Sangue fresco para os príncipes das trevas. Eu enganei por não ter castelo. Chupei e bem mais do que por dois furos. Provei a carne e o sangue e cuspi o excesso no chão da cozinha. Mal sabia você que nem alho resolve. A loucura nem precisa de caixão, muito menos de teias de aranha, de Cárpatos. Arrastei pelos cabelos até o colchão. Da esquina até o colchão. O lugar para o sacrifício, longe de onde bate o coração dos vampiros. Como a noite e o sol, em contradição.

impossíveis desertos

Às margens das cidades, das torres e dos portos, dos templos e palácios imperiais, longe dos gritos das lavadeiras, existe um espaço que reina como capricho da natureza e, como verificamos mais tarde, também capricho dos próprios homens. O deserto, filho rebelde da geografia, estende-se para longe das cidades, onde somente a fé ou o delírio o atravessam e alguns animais tão caprichosos quanto a superfície pela qual rastejam, sobrevoam, caçam e apodrecem. Como falar do deserto sem falar dos desertos? Acredite se eu disser que tudo neles é movediço, a imagem que fazemos deles de dentro das muralhas da capital, o primeiro instante desértico quando nada mais resta no olhar a não ser a ausência da cidade. Tudo se resume em sua arma mais secreta: a miragem. Até seus nomes escapam no vento e nos dialetos movediços dos nômades. Deserto do Vento Vermelho já é logo ali deserto dos Rubros e, a um passo à direita, deserto do Ombro da Mulher Deitada. Nele nada se contém e seu desenho se transforma ao passo da imaginação dos viajantes que pousam ali olhos de quem nunca viu, nunca pensou ou nunca disse.

Quando cheguei à porta do deserto, que nem é porta e tampouco deserto ainda, avistei antes de tudo um horizonte destruído no qual não era mais possível perder o olhar no infinito, a não ser pelas escavações, crateras dentro das quais a visão do viajante parecia ser sugada até as entranhas da terra. Em contraste com o breu dos buracos, a superfície do local era composta de uma rocha vermelha em um tom de vermelho nácar. O acaso, fantasma que paira sobre toda jornada, fez com que toda a história do lugar me fosse relatada pelo seu habitante ancestral, o chacal. Mina de pedra preciosa nos tempos áureos de outra dinastia de reis, o deserto dos Rubros nasceu da extração do mineral vermelho leitoso e de seu abandono na ocasião em que, muitas milhas ao sul, outro mineral bem mais valioso que este havia sido descoberto. A lenda da pedra rubra descreve uma noite na qual a lua acariciou o horizonte de tão perto que foi roçada pelo vento vermelho do norte. Desta visita inesperada, espalharam-se pelo chão tapetes de rocha vermelha, símbolo de encontro entre o céu e a terra. O chacal caminha toda noite relembrando o mito e vai seguindo as veias expostas do mineral. Às vezes, o vento vermelho sopra novamente com saudades daquele instante, mas tudo o que ele faz é infiltrar-se em todas as cavidades, perder-se nos abismos e voltar, livrando o local de todas as marcas do tempo, como o pó, alguns ossos e fragmentos de pedra preciosa, pequenos como lágrimas. O vento em seu trajeto elíptico deposita os vestígios em várias escalas, longe de Rubros, levando-nos cada vez mais perto do coração de um corpo que não se pode contornar, cuja pele é sempre mais uma miragem, mais uma promessa, um por vir.

Assim, cheguei ao deserto de Tóvia. Mar branco de ossos desfeitos, gastos, andei neste pó escaldante acompanhando a curva de sua duna mais alta. Por vez, um vento brando e rasteiro ondulava o pó de maneira tão insinuante que eu nunca soube se era realmente obra do vento ou sim uma serpente branca deslizando duna acima. O chacal tinha avisado sobre a serpente, sobre o perigo de pisar nela e de ser levado junto nas profundezas do pó - lá onde ainda permanecem inteiros os ossos dos chacais, sobre seus olhos que são como duas lágrimas vermelhas. Mesmo se fosse de fato uma serpente dançando naquela areia, o chacal não poderia saber que, em vez de asfixiar o viajante, ela o levava no vento, guiando-o para além das dunas, um pouco mais perto do rumor das fontes. No caminho dos ossos, esqueci de procurar o par de olhos rubros. Os chacais, com seus olhos que miram ao mesmo tempo o passado e o futuro, nunca se esqueceram do abandono e cultivaram, em segredo, um medo tão insondável quanto as crateras de seu território, um medo projetado no amanhã e certamente nas muitas dinastias futuras.

Sem olhar para trás, penetrei sem medo no deserto de Xalo. O horizonte estava de volta aos meus olhos, mais reto e perfeito do que qualquer imagem possível. Caminhei e logo senti o chão devolvendo a vibração dos meus passos, subindo pelas minhas pernas como uma estranha corrente provindo do solo. Parei um instante e verifiquei, ao encostar meu ouvido no chão, o murmúrio subterrâneo. Um escorpião prateado como a lâmina das espadas se aproximou e colocou no meu ouvido uma gota de água do alto do seu dardo. Compreendi que naquele chão raso se escondiam os poços, os lençóis líquidos, e que os buracos das minas de Rubros de tão fundos e tortuosos haviam quase aflorado neste lugar que não parecia conter nada, esconder nada. Assim, não se enxergava o menor acesso aos poços e desconfiei que ninguém, exceto os escorpiões, transitava entre a superfície e as fontes. Por fim, saciei minha sede, gota após gota, graças a um exército de escorpiões prateados.

Logo depois, segui viagem e encontrei-me no deserto de Lagas. Ali, o sol parece estar mais próximo da terra. Tanto que as águas secretas encontradas em Xalo aqui evaporavam e formavam nuvens volumosas. Não se via o horizonte nem o sol, somente um lençol opaco e, por vezes, uma gaivota costurando entre o ar e a água presa no céu. Quando ela desaparecia nas nuvens, lembrava-me da serpente e da areia de ossos, do aviso do chacal. Quando ela ressurgia, lembrava o escorpião e o frescor da água pingando na minha boca, aquela felicidade em impulsos mínimos. Pensei de novo no vento vermelho e onde ele me levaria se decidisse soprar que nem naquela noite em Rubros. Seria como me carregar na garupa da gaivota e sobrevoar o mar, avistar o horizonte de novo perfeito entre as ondas da serpente invisível. Entendi que os desertos me levaram de volta até as portas da cidade, na entrada do porto onde os viajantes desembarcam juntos com todas as especiarias. Perto das torres e palácios, junto aos mercadores de rubis e os gritos das lavadeiras.

fantasma do verde

Este não é um relato sobre você. Não. É sobre um cara que acorda pela manhã, geralmente cedo, geralmente antes que a cidade de fato acorde, naqueles minutos indecisos quando a luz dos postes na rua se apaga e do alto da sacada você força os olhos para enxergar o contorno das coisas. Não. Decididamente não é dia ainda. É hora do café forte e das luzes na baia desaparecendo como vagalumes. Nunca me canso disso, dessa visão em plongée sobre a cidade, das manhãs que vejo nascer. Não canso de saborear o tempo, torrado e fumegante vindo da terra acima até a sola dos chinelos. Já é tempo de primavera. Ele contempla a técnica das cores, procura decifrar suas transições mais sutis até sua mente se confundir numa visão sem cor. Fecha os olhos e abre-os de novo. Entre as cores nascentes – o azul-claro, o rosa, o laranja – há o verde. Faixa imperceptível, porém que está lá, enviesada entre as outras mais óbvias e impacientes. O verde do céu, o discreto verde do céu que pintei com meus olhos no céu da primavera. A cidade agora já desperta. Pequenos retângulos de luz se acendem como televisores suspensos ao longe. Há outras pessoas nas sacadas, outros cafés e outras fumaças. No céu, o fantasma do verde. Esta é a pequena aurora boreal do homem da sacada que se retira, pensando nas tarefas do dia: os papéis, o trabalho, o trânsito, o programa de humor no rádio, a aula de pintura na qual se esforça em dar volume a um vaso verde para sua primeira aquarela. O dia desvanece assim, diluído e dividido entre as diferentes vibrações de cores sob meu olhar atento. À noite, a sacada se transforma. Nela, tomo um chá e o tempo me recobre com o sereno, como fumaça cuspida pelas estrelas. Eu me curvo sensivelmente, às vezes com a vaga impressão de estar prestes a cair. Sinto que sim. Há duas pessoas em cada extremidade do dia, acima da cidade. O que as liga me escapa como o espectro de um verde íntimo e magnético que, sem se mostrar, mantém este corpo em pé. É um cordão umbilical que nutre os dois seres de um vai e vem de fluxos e humores. Estou, sou colado em você. Diferente da vida que surge e cresce dentro de outro ser, somos excrescências insuspeitadas, ligadas por uma gravidade ainda a ser descoberta. No final, por mais que eu relute, me perca, me esqueça, na mesma sacada somos duas imagens suspensas no tapete voador. Você anuncia o dia. Eu sussurro a noite. Somos o invisível traço que torna evidente aos olhos, e ao mundo, uma constelação.